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E A CULPA É DE QUEM?

(...) 6 - imputação de um ato ilícito ao seu autor, inculpação.
culpa in Dicionário infopédia da Língua Portuguesa. Porto: Porto Editora, 2003-2019. 

Desde muito cedo que todos nós contactamos com o poder da culpa. Primeiro, percebemos que
não é bom quando esta se assola sobre nós e, mais tarde, que é muito melhor quando podemos
ser os detentores da decisão de a atribuir. A necessidade forte de apontar o dedo é algo que nos é,
infelizmente, intrínseco. Aprendemos a fazê-lo ainda antes de dar os primeiros passos, assim que a
nossa perceção se dá conta de que existem momentos em que precisamos de uma escapatória.
Isto é certamente menos relevante quando somos miúdos. Assim que crescemos, o cenário altera-
se um pouco. A nossa vontade em querer passar a batata quente a outra pessoa ou, em último
recurso, à sociedade aumenta à medida que nos vamos apercebendo de que o truque do
menino(a) fofo(a) já não é eficaz.
Diariamente, temos fácil acesso a uma grande quantidade de assuntos polémicos e não demoro a
perceber que a necessidade de culpabilização habita em todos eles. Abrir as caixas de comentários
nas redes sociais pode ser uma experiência humorística muito interessante, mesmo quando o
assunto é sério. De muitos assuntos que poderia escolher talvez o que mais me incomoda é a
decadência da televisão portuguesa que não pára de surpreender. Os canais generalistas
conseguem atingir feitos notáveis: copiam o mesmo fundamento estúpido e dão-lhe um nome
diferente. Voilá, já temos muita "variedade" para o horário nobre de domingo à noite.
Acusam-nos de ser a geração que já nasceu com as suscetibilidades feridas e eu recuso-me a
aceitar esse cognome porque acredito nas minhas convicções: ano após ano continuam a investir
em formatos que apelam não somente a estereótipos ultrapassados, mas que também incentivam
a uma identidade portuguesa machista e de materialização do sexo feminino. Isto não é inédito. E
no meio deste vendaval da Internet, cheio de hashtags e de inteligência suprema, eu questiono:
de quem é culpa?
Procuramos tanto pela resposta e não conseguimos dormir sem a ter. Não demora muito até que
as multidões do Facebook percam as estribeiras e, com elas, a racionalidade. Querem um nome.
Digam o que disserem isto é a mais profunda essência do ser humano. E a partir daqui vemos
muitas versões: a culpa é da televisão portuguesa que aposta em programas sem conteúdo; a
culpa é das concorrentes envolvidas que não representam a força do sexo feminino e sujeitam-se
a uma exposição e avaliação pública com base em ideias retrógradas; a culpa é das apresentadoras
porque se dizem influencers de um mundo em mudança mas aceitam este tipo de projetos... Mas
e se fôssemos ao que ninguém quer aprofundar?

Milhares andam numa onda de #feminismo e #boicote. Publicam nas redes sociais imagens sem
fim de indignação e, ao fim do dia, são as mesmas que se sentam no sofá para assistir a esses
programas. Chocante, não é? Por curiosidade, pelo humor, porque “calhou" - as justificações são
para todos os gostos. Os telespectadores são o motor monetário das estações televisivas. Grande
parte das pessoas que se mostram revoltadas é a mesma que fornece combustível para que este
tipo de programas continue a existir. Os números falam por si. 
Fazer hashtags não chega. Movem multidões é certo, mas qual será o real número dos
movimentos? Quantos serão aqueles que realmente praticam o que defendem? Não será que uma
parte significativa continua a procurar por um culpado? Não estarão grande parte dessas pessoas
a desviar atenções à sua própria culpabilização? Isto é hipocrisia e é real. Algo que está inerente à
nossa espécie e que piora num grau exponencial e perigoso quando se alia a redes sociais.
Eu não nasci numa geração de suscetibilidades feridas. Eu nasci num tempo em que as pessoas
podem ser livres de se expressar e onde nada é pequeno o suficiente que não mereça ser
discutido. Mas ao mesmo tempo nasci num mundo que continua com o orgulho ferido. Tem que
se fazer mais e publicar menos. E quem é o culpado? Talvez eu, talvez todos nós. Talvez tenhamos
que aceitar a responsabilidade e parar de a empurrar para terceiros.
Temos culpa de não fazer mais, de não tentar mais, de colocar um filtro nos nossos pensamentos
só pela possibilidade de nos considerarem uma geração que se preocupa com assuntos que nunca
foram problema. Pois bem, chegamos para ficar. Este é o futuro. Chega de dizer que se quer sem
se fazer por isso. O desconcerto é grande mas o destino é bom!

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Texto: Ana Brites

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E a culpa é de quem?: Sobre
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